Quem sou eu





Crie glitters aqui!

"...Liberdade, essa palavra
que o sonho humano alimenta
que não há ninguém que explique
e ninguém que não entenda..."

Cecília Meireles

sexta-feira, 22 de outubro de 2021

LOUCURAS DE MAMÃE

 

No bairro onde moro, sempre encontro pessoas que perguntam pelo estado de saúde de mamãe, eu dou respostas curtas e logo me retiro,    não tenho muita paciência para ficar batendo papo, dando detalhes,  confesso que tenho uma certa preguiça de falar. 

— Lucas! Como está a sua mãe?

Melhor, D. Rita, eu fui visitá-la ontem, ela está bem melhor mesmo. 

Logo que eu me vi livre da vizinha comecei a pensar na resposta que dei a sua pergunta.

Achei que estava melhor sim, e respondi com sinceridade.  Da última vez que fui visitá-la, ela disse que estava muito cansada, e realmente parecia muitíssimo cansada, tinha até olheiras profundas, lhe perguntei o porquê de tanto cansaço, achei que poderia ser enfermeiros lhe dando muitas atividades físicas numa tentativa de aumentar a sua serotonina.

Bem, diferente do que eu pensei, ela me respondeu que estava cansada, porque tivera muitos filhos, e que eles davam muito trabalho, principalmente à noite, quando miavam demais. A pobre estava toda arranhada de tanto se enfiar embaixo da cama, procurando seus "filhos".

Comparando com o estado em que ela se encontrava antes da internação, posso até dizer que estava ótima.

Ela tinha ficado uma semana inteira embaixo da cama com a luz apagada, não saía nem para comer, a única pessoa que podia entrar no quarto sem correr risco de morte era a minha avó; meu pai, coitado, vivia todo mordido e unhado, toda vez que ele tentava se aproximar, ela atacava.

Eu já estava bastante acostumado com as frequentes perguntas, dos vizinhos, conhecidos e parentes; não me deixava nem um pouco constrangido, todos sabiam como era a vida de minha família.

Quando minha mãe surtava; o que, não era raro, todos tomavam conhecimento e tentavam ajudar de alguma maneira.

Lembrei-me da vez em que ela pegou o carro de madrugada e foi embora. Não tínhamos outro carro para segui-la, somente no dia seguinte é que fomos atrás dela, com um carro emprestado do nosso vizinho.

Procuramos em todos os cantos: casa de parentes, hospitais, cadeias, IML e nada. Foi desesperador. No entanto, depois de uma semana, conseguimos encontrá-la numa praça qualquer da cidade, descalça, com as roupas imundas e rasgadas, os cabelos emplastados. Quando tentamos trazê-la para casa, ela se debateu, chutou, mordeu e se agarrou no banco da praça, foi preciso contar com a ajuda de várias pessoas para levá-la até o carro.

            No trajeto para casa, ela gritava, cuspia, babava e lambia o vidro do carro, que ficou todo melecado com a sujeira de suas mãos e rosto.

            Chegando em casa, foi preciso duas pessoas para dar-lhe um banho, nós a colocamos embaixo do chuveiro, o sabonete e o xampu tinham que ser passados na esponja, para que ela não comesse ou bebesse; por várias vezes enfiei o dedo em sua boca para tirar os pedaços de sabonete, só depois tiramos as suas roupas imundas, que foram direto para o lixo. Meu pai a segurava, enquanto a minha avó a lavava, enquanto isso fiz um suco e misturei com seus medicamentos mais fortes, então ela tomou no chuveiro mesmo e foi se acalmando aos poucos, voltando a falar com um pouco de coerência, depois do banho a colocamos na cama e ela dormiu calmamente por várias horas.

Mamãe sempre foi muito sensível e caridosa, nada era somente dela, sempre que tinha oportunidade de ajudar o próximo lá estava ela de braços abertos.

Nossa geladeira tinha apenas o essencial para o dia a dia e nossos armários tinham trancas com chaves, como também os guarda-roupas e as sapateiras. E havia um motivo para isso. Quando alguém chegava batendo na porta e pedindo algo para comer, ela dava tudo o que estava ao seu alcance; frutas, macarrão, arroz, óleo..., enchia as mãos, as sacolas e entregava. E ainda falava:

—Espera aí que tem mais um pouquinho.  Dava tudo o que tínhamos em casa. O mesmo acontecia com as roupas e os sapatos.

Não podia ver uma pessoa passando frio ou com roupas surradas. Quando víamos, tínhamos que tirar da mão dela e esconder. Mesmo assim, ela não se conformava e ficava procurando pela casa algo que pudesse ser doado.

Meu pai sempre teve muita paciência e nunca acreditou que ela fosse ficar pior.  

Ele conta que a viu pela primeira vez em uma viagem que fez para visitar uns tios em Minas Gerais, foi paixão à primeira vista. Eles se conheceram em uma pracinha onde os rapazes e as moças iam passear.   Coisas de cidade pequena. Ela estava com as irmãs e ele logo se encantou pelos seus grandes olhos negros e seu sorriso.

Eles conversaram um pouco e se despediram a partir daí começaram a se encontrarem sempre na presença de alguém, nunca podiam ficar sozinhos.   O namoro foi praticamente através de cartas, pois ela vivia em Minas e ele em São Paulo.

— Ela ficava um pouco nervosa, quando morava com os pais — dizia ele. — Era uma casa de regras severas, então as brigas eram frequentes, o que a deixava inconformada e triste, chegando até a fugir de casa por várias vezes, quando regressava apanhava muito e ficava de castigo presa em seu no quarto.

            Depois de um ano se correspondendo eles se casaram. Ninguém falou para o meu pai sobre as crises que ela tinha de vez em quando, tampouco dos remédios que ela tomava.

Porém, quando estavam juntos ela era extremamente alegre, risonha e encantadora. Nunca passou pela sua cabeça que ela pudesse ter algum problema mais sério.  Era apenas um pouco excêntrica, gostava de usar chapéu, fazia suas próprias roupas e usava umas maquiagens bem fortes e   não tinha nenhum senso de direção. Quando saiam juntos para passear ela ficava distraída vendo alguma coisa e depois não sabia para onde estava indo e acabava se perdendo, isso acontecia sempre.

Na lua de mel eles viajaram para uma cidade grande, ela sumiu, ele ficou duas horas andando de um lado para outro tentando encontrá-la. Quando a encontrou ela estava tranquila tomando um sorvete e nem tinha notado a ausência dele, fora essa desatenção ela não tinha nada de anormal.

            Um ano depois eu nasci, foi aí que ela ficou estranha, queria que eu fosse uma menina, não aceitava de jeito nenhum um menino, então chorava muito e me vestia de menina, foi quando minha avó veio para ajudar a cuidar de mim.

Foi então que meu pai tomou conhecimento através de minha avó, que ela já tinha feito tratamento e já estivera internada por causa das crises, o que ele achou um exagero, uma falta de humanidade. Na verdade, não deu nenhuma importância ao que sua sogra disse. Ele dizia que algumas mulheres ficavam assim após o parto, que era apenas uma fase e que logo ia passar.

Depois de um tempo ela se acostumou com o fato de eu ser menino então vivíamos brincando, ela gostava de inventar histórias fantasiosas e de representar enquanto eu ficava ouvindo com muita atenção e me empolgava com suas trocas de roupas, seus penteados extravagantes, para cada história era uma roupa e um penteado diferente.

A minha infância até que foi divertida, nossa casa sempre foi alegre, as portas e janelas e estavam sempre abertas.

— Abra tudo, todas as janelas, portas e vidraças deixe a luz do Sol entrar! Casa fechada vira túmulo — dizia mamãe.

Os vizinho e meus amigos eram bem recebidos a qualquer hora, minha avó acabou morando conosco também.

Na Páscoa, nossa casa virava uma fábrica de chocolate, elas faziam ovos para vender aos vizinhos e todas as crianças da rua acabavam ganhando um, que eram escondidos e tínhamos que encontrá-los, cada criança recebia uma dica, que levava outra dica, que levava a terceira e de lá tinha que matar uma charada que levaria aos ovos, era uma festa.

No Natal a árvore era repleta de presentes, coisas que elas faziam com tecido, miçangas e papel reciclado, todos ganhavam uma lembrança, eram agendas, cadernos de receitas, diários, pulseiras, colares, brincos, bonecas etc.     A Ceia era na rua, os vizinhos traziam seus pratos e comíamos todos juntos depois ficávamos sentados conversando até o dia amanhecer.

Quando acabava a luz a gente brincava de esconde-esconde, ela emaranhava seus longos cabelos crespos, passava uma maquiagem bem escura nos olhos, borrava em volta da boca com um batom vermelho e saia a minha procura com uma vela na mão, imagine você no meio da escuridão eu via apenas aquele rosto borrado, claro que me escondia e ao mesmo tempo que eu adorava, também sentia muito medo. Uma vez senti tanto medo que fiquei parado, quando ela chegou bem pertinho e se abaixou para me pegar, eu bati forte em sua cabeça com um instrumento musical de meu pai.

Minha avó me contou que desde que começou a andar ela já dava trabalho, pois não podia ficar sozinha, quando viu o portão da casa aberto, saia e ia embora, por várias vezes, alguém esquecia de trancar o portão e depois todos precisavam sair pelo bairro procurando por ela. Ela simplesmente saia e ia andando sem destino.

Aos 4 anos ela foi encontrada depois de 3 dias em um acampamento cigano, viu umas ciganas passando pela rua, achou-as bonitas e seguiu-as até seu acampamento e ficou por lá, pois não sabia voltar para casa. As ciganas contaram que foram a feira e na volta viram que aquela criança estava no meio das suas e ninguém sabia de onde era.

No começo ela apanhava muito de meu avô, não chorava, apenas olhava fixamente para os olhos dele durante o castigo, o que o desconcertava. Chegaram à conclusão de que ela tinha uns parafusos soltos e a mantiveram presa dentro de casa.

Conforme fui crescendo e entendendo as coisas, comecei a achar que havia alguma coisa estranha com ela, era diferente das outras mães, então comecei a questionar meu pai.

Para meu pai tudo era muito normal eles se amavam e era isso que importava, se divertiam muito, viajavam nas férias mesmo sabendo que ela ia se perder em algum lugar e saiam para dançar toda semana.

Quanto as suas manias, que eram várias e duravam um certo período; nas épocas das leituras, ela lia 20 livros em menos de 10 dias, e todos da casa acabavam se envolvendo de alguma forma nas histórias, pois ela ia andando pela casa e ia lendo em voz alta, depois vinha a mania da pintura, pintava dia e noite uma tela após a outra, depois vinha a fase do crochê, fazia muitas toucas e cachecóis e doava para qualquer pessoa, teve a fase das bonecas de pano, das velas, dos sabonetes, das bijuterias, enfim terminava uma mania começava outra.  

Eu sempre conversei muito com mamãe e ela as vezes me dizia: — Não pense que é fácil ser eu. Tem épocas em que eu também não me aguento.

Quando fiz 18 anos fui estudar em uma Universidade em outro estado, não foi fácil para ninguém, imagine para mamãe. Viajamos 15 horas para fazer a matrícula e arrumar um lugar para eu morar, ao chegar no Campus os veteranos já estavam sentados olhando os calouros que se matriculavam. Um deles até chegou a perguntou que curso eu ia fazer.  Mamãe olhava aqueles rapazes com suspeita, de repente ela nos deixou e foi até o grupo de rapazes, chegou bem pertinho deles e falou:

— Se vocês encostarem um dedo em meu filho, eu volto aqui e garanto que castrarei cada um de vocês sem anestesia. Estou falando sério! Estão me entendendo! 

Ela tinha o semblante sério, foi muito assustador. Todos ficaram encarando minha mãe, e eu não sabia onde enfiar a minha cara.

Depois de arrumar um lugar para ficar, mesmo que provisório meus pais retornaram, deixando bem claro que eu deveria ficar longe dos trotes, não participar da primeira semana de aula e ligar para casa todos os dias.

Eu, como todo adolescente, quis aproveitar tudo que a vida podia proporcionar longe dos olhos de meus pais. Claro que fui participar do trote no primeiro dia de aula e esqueci-me de colocar o celular para carregar.

Como eu não liguei para casa, meus pais ficaram o dia todo tentando me encontrar, quando já estava anoitecendo, ficaram sabendo não sei por quem que eu tinha saído às 7h para participar do trote. Foi aí que minha mãe enlouqueceu de vez.

Meu pai falou que ela gritava, chorava e andava de um lado para outro da casa, dizia que eu estava boiando em um lago qualquer da cidade. Ligaram para a polícia, para o corpo de bombeiro, para o coordenador do curso, para todos os alunos da lista de aprovados do meu curso, para o porteiro do prédio e para os rapazes que iam dividir o apartamento comigo.  

Às 23h, estava eu todo feliz num churrasco organizado com o dinheiro do trote, pois ficamos o dia inteiro no semáforo pedindo dinheiro, quando começou a chegar gente me procurando, e não era pouca gente, o porteiro do prédio onde eu ira morar já estava de folga, então foi com a esposa e os filhos, o coordenador do curso me olhou de um jeito que eu nunca mais esqueci, isso sem falar nos policiais que me deram uma bronca e me fizeram ligar para casa. Só sei que os veteranos com quem eu ia morar me levaram para o apartamento e disseram que eu deveria encontrar outro lugar para morar, que não ia dar certo viver com eles. Não respondi nada, fiquei bem quieto e chorei em silêncio, por ter passado tanta vergonha.           

Não era à toa que minha avó não a deixava cozinhar, era muito intensa em tudo que fazia, queria de fazer vários pratos ao mesmo tempo. 

Quando minha avó não estava presente ela ia para a cozinha e dizia: — Quem falou que precisa por sal no feijão? Eu gosto de feijão com açúcar!   Coma feijão com o que você quiser.

Fazia bolos e pães, mas todos tinham de ficar de olho em todos os detalhes. Os pães saíam com ovos inteiros e os bolos salgados, com talheres no meio. Chegamos até a comer bolo de fubá salgado e com pimenta.

O fato mais grave de que me lembro, foi no aniversário de 35 anos de meu pai. Ele não gostava de festas, então resolvemos fazer um jantar surpresa. Minhas avós e minhas tias chegaram trazendo cada uma, um prato. Minha mãe quis ficar responsável pelas tortas e salgados. A mesa ficou linda. Os pratos foram colocados um a um, todos com uma aparência maravilhosa, só faltavam os assados de minha mãe. Meu pai chegou, e foi aquela surpresa. Estávamos prontos para comer, brindamos e alguém lembrou que estava faltando à mamãe com os seus assados. Eu saí do meu lugar e fui até a cozinha ajudá-la.

Chegando lá, vi que a bancada da pia estava repleta de assadeiras. Tinha também assadeiras no chão e em cima do fogão. Cheguei a contar doze pratos, com várias partes de carnes e aves assadas.

O cheiro era inebriante, a aparência maravilhosa. Ela estava muito contente com seu trabalho, enfeitara todos os pratos, com muita delicadeza e carinho, parecia uma criança em meio aos seus brinquedos.

Comemos muito, e distribuímos para os vizinhos um pouco daquela fartura. Ninguém teve a preocupação de perguntar onde ela encontrou tantas carnes. Dias depois ouvimos boatos de sumiço de alguns animais da vizinhança.

Foram encontrados esqueletos de bichos em nosso quintal, até os coelhos e os pombos de minha vizinha sumiram. Vi uns cartazes na padaria e nos postes do nosso bairro, de alguns animais desaparecidos, mas nunca pudemos provar nada, e muito menos perguntar para ela.

Eu estava acostumado com a minha vida em família, na  verdade não conhecia outra. O que é ser normal ou ter uma família normal, quem sabe? Todos têm seus altos e baixos. Todos têm conflitos, só sei que tenho aprendido muita coisa sobre fé, amizade, compaixão e principalmente amor.