No
bairro onde moro, sempre encontro pessoas que perguntam pelo estado de saúde de
mamãe, eu dou respostas curtas e logo me retiro, não
tenho muita paciência para ficar batendo papo, dando detalhes, confesso que tenho uma certa preguiça de falar.
— Lucas!
Como está a sua mãe?
— Melhor, D. Rita, eu fui
visitá-la ontem, ela está bem melhor mesmo.
Logo
que eu me vi livre da vizinha comecei a pensar na resposta que dei a sua
pergunta.
Achei
que estava melhor sim, e respondi com sinceridade. Da última vez que fui visitá-la, ela disse que
estava muito cansada, e realmente parecia muitíssimo cansada, tinha até
olheiras profundas, lhe perguntei o porquê de tanto cansaço, achei que poderia
ser enfermeiros lhe dando muitas atividades físicas numa tentativa de aumentar
a sua serotonina.
Bem,
diferente do que eu pensei, ela me respondeu que estava cansada, porque tivera
muitos filhos, e que eles davam muito trabalho, principalmente à noite, quando
miavam demais. A pobre estava toda arranhada de tanto se enfiar embaixo da
cama, procurando seus "filhos".
Comparando
com o estado em que ela se encontrava antes da internação, posso até dizer que
estava ótima.
Ela
tinha ficado uma semana inteira embaixo da cama com a luz apagada, não saía nem
para comer, a única pessoa que podia entrar no quarto sem correr risco de morte
era a minha avó; meu pai, coitado, vivia todo mordido e unhado, toda vez que
ele tentava se aproximar, ela atacava.
Eu
já estava bastante acostumado com as frequentes perguntas, dos vizinhos,
conhecidos e parentes; não me deixava nem um pouco constrangido, todos sabiam
como era a vida de minha família.
Quando
minha mãe surtava; o que, não era raro, todos tomavam conhecimento e tentavam
ajudar de alguma maneira.
Lembrei-me
da vez em que ela pegou o carro de madrugada e foi embora. Não tínhamos outro
carro para segui-la, somente no dia seguinte é que fomos atrás dela, com um
carro emprestado do nosso vizinho.
Procuramos
em todos os cantos: casa de parentes, hospitais, cadeias, IML e nada. Foi
desesperador. No entanto, depois de uma semana, conseguimos encontrá-la numa
praça qualquer da cidade, descalça, com as roupas imundas e rasgadas, os
cabelos emplastados. Quando tentamos trazê-la para casa, ela se debateu,
chutou, mordeu e se agarrou no banco da praça, foi preciso contar com a ajuda
de várias pessoas para levá-la até o carro.
No
trajeto para casa, ela gritava, cuspia, babava e lambia o vidro do carro, que
ficou todo melecado com a sujeira de suas mãos e rosto.
Chegando em casa, foi preciso duas
pessoas para dar-lhe um banho, nós a colocamos embaixo do chuveiro, o sabonete
e o xampu tinham que ser passados na esponja, para que ela não comesse ou
bebesse; por várias vezes enfiei o dedo em sua boca para tirar os pedaços de
sabonete, só depois tiramos as suas roupas imundas, que foram direto para o
lixo. Meu pai a segurava, enquanto a minha avó a lavava, enquanto isso fiz um
suco e misturei com seus medicamentos mais fortes, então ela tomou no chuveiro
mesmo e foi se acalmando aos poucos, voltando a falar com um pouco de coerência,
depois do banho a colocamos na cama e ela dormiu calmamente por várias horas.
Mamãe
sempre foi muito sensível e caridosa, nada era somente dela, sempre que tinha
oportunidade de ajudar o próximo lá estava ela de braços abertos.
Nossa
geladeira tinha apenas o essencial para o dia a dia e nossos armários tinham
trancas com chaves, como também os guarda-roupas e as sapateiras. E havia um
motivo para isso. Quando alguém chegava batendo na porta e pedindo algo para
comer, ela dava tudo o que estava ao seu alcance; frutas, macarrão, arroz,
óleo..., enchia as mãos, as sacolas e entregava. E ainda falava:
—Espera
aí que tem mais um pouquinho. Dava tudo
o que tínhamos em casa. O mesmo acontecia com as roupas e os sapatos.
Não
podia ver uma pessoa passando frio ou com roupas surradas. Quando víamos,
tínhamos que tirar da mão dela e esconder. Mesmo assim, ela não se conformava e
ficava procurando pela casa algo que pudesse ser doado.
Meu
pai sempre teve muita paciência e nunca acreditou que ela fosse ficar pior.
Ele
conta que a viu pela primeira vez em uma viagem que fez para visitar uns tios
em Minas Gerais, foi paixão à primeira vista. Eles se conheceram em uma
pracinha onde os rapazes e as moças iam passear. Coisas de cidade pequena. Ela estava com as
irmãs e ele logo se encantou pelos seus grandes olhos negros e seu sorriso.
Eles
conversaram um pouco e se despediram a partir daí começaram a se encontrarem
sempre na presença de alguém, nunca podiam ficar sozinhos. O namoro foi praticamente
através de cartas, pois ela vivia em Minas e ele em São Paulo.
—
Ela ficava um pouco nervosa, quando morava com os pais — dizia ele. — Era uma
casa de regras severas, então as brigas eram frequentes, o que a deixava
inconformada e triste, chegando até a fugir de casa por várias vezes, quando
regressava apanhava muito e ficava de castigo presa em seu no quarto.
Depois
de um ano se correspondendo eles se casaram. Ninguém falou para o meu pai sobre
as crises que ela tinha de vez em quando, tampouco dos remédios que ela tomava.
Porém,
quando estavam juntos ela era extremamente alegre, risonha e encantadora. Nunca
passou pela sua cabeça que ela pudesse ter algum problema mais sério. Era apenas um pouco excêntrica, gostava de
usar chapéu, fazia suas próprias roupas e usava umas maquiagens bem fortes
e não tinha nenhum senso de direção. Quando
saiam juntos para passear ela ficava distraída vendo alguma coisa e depois não
sabia para onde estava indo e acabava se perdendo, isso acontecia sempre.
Na
lua de mel eles viajaram para uma cidade grande, ela sumiu, ele ficou duas
horas andando de um lado para outro tentando encontrá-la. Quando a encontrou
ela estava tranquila tomando um sorvete e nem tinha notado a ausência dele,
fora essa desatenção ela não tinha nada de anormal.
Um ano depois eu nasci, foi aí que
ela ficou estranha, queria que eu fosse uma menina, não aceitava de jeito
nenhum um menino, então chorava muito e me vestia de menina, foi quando minha
avó veio para ajudar a cuidar de mim.
Foi
então que meu pai tomou conhecimento através de minha avó, que ela já tinha
feito tratamento e já estivera internada por causa das crises, o que ele achou
um exagero, uma falta de humanidade. Na verdade, não deu nenhuma importância ao
que sua sogra disse. Ele dizia que algumas mulheres ficavam assim após o parto,
que era apenas uma fase e que logo ia passar.
Depois
de um tempo ela se acostumou com o fato de eu ser menino então vivíamos
brincando, ela gostava de inventar histórias fantasiosas e de representar
enquanto eu ficava ouvindo com muita atenção e me empolgava com suas trocas de
roupas, seus penteados extravagantes, para cada história era uma roupa e um
penteado diferente.
A
minha infância até que foi divertida, nossa casa sempre foi alegre, as portas e
janelas e estavam sempre abertas.
—
Abra tudo, todas as janelas, portas e vidraças deixe a luz do Sol entrar! Casa
fechada vira túmulo — dizia mamãe.
Os
vizinho e meus amigos eram bem recebidos a qualquer hora, minha avó acabou morando
conosco também.
Na
Páscoa, nossa casa virava uma fábrica de chocolate, elas faziam ovos para
vender aos vizinhos e todas as crianças da rua acabavam ganhando um, que eram
escondidos e tínhamos que encontrá-los, cada criança recebia uma dica, que
levava outra dica, que levava a terceira e de lá tinha que matar uma charada
que levaria aos ovos, era uma festa.
No
Natal a árvore era repleta de presentes, coisas que elas faziam com tecido,
miçangas e papel reciclado, todos ganhavam uma lembrança, eram agendas,
cadernos de receitas, diários, pulseiras, colares, brincos, bonecas etc. A
Ceia era na rua, os vizinhos traziam seus pratos e comíamos todos juntos depois
ficávamos sentados conversando até o dia amanhecer.
Quando
acabava a luz a gente brincava de esconde-esconde, ela emaranhava seus longos
cabelos crespos, passava uma maquiagem bem escura nos olhos, borrava em volta
da boca com um batom vermelho e saia a minha procura com uma vela na mão,
imagine você no meio da escuridão eu via apenas aquele rosto borrado, claro que
me escondia e ao mesmo tempo que eu adorava, também sentia muito medo. Uma vez
senti tanto medo que fiquei parado, quando ela chegou bem pertinho e se abaixou
para me pegar, eu bati forte em sua cabeça com um instrumento musical de meu pai.
Minha
avó me contou que desde que começou a andar ela já dava trabalho, pois não
podia ficar sozinha, quando viu o portão da casa aberto, saia e ia embora, por
várias vezes, alguém esquecia de trancar o portão e depois todos precisavam
sair pelo bairro procurando por ela. Ela simplesmente saia e ia andando sem
destino.
Aos
4 anos ela foi encontrada depois de 3 dias em um acampamento cigano, viu umas
ciganas passando pela rua, achou-as bonitas e seguiu-as até seu acampamento e
ficou por lá, pois não sabia voltar para casa. As ciganas contaram que foram a
feira e na volta viram que aquela criança estava no meio das suas e ninguém
sabia de onde era.
No
começo ela apanhava muito de meu avô, não chorava, apenas olhava fixamente para
os olhos dele durante o castigo, o que o desconcertava. Chegaram à conclusão de
que ela tinha uns parafusos soltos e a mantiveram presa dentro de casa.
Conforme
fui crescendo e entendendo as coisas, comecei a achar que havia alguma coisa
estranha com ela, era diferente das outras mães, então comecei a questionar meu
pai.
Para
meu pai tudo era muito normal eles se amavam e era isso que importava, se
divertiam muito, viajavam nas férias mesmo sabendo que ela ia se perder em
algum lugar e saiam para dançar toda semana.
Quanto
as suas manias, que eram várias e duravam um certo período; nas épocas das
leituras, ela lia 20 livros em menos de 10 dias, e todos da casa acabavam se
envolvendo de alguma forma nas histórias, pois ela ia andando pela casa e ia lendo
em voz alta, depois vinha a mania da pintura, pintava dia e noite uma tela após
a outra, depois vinha a fase do crochê, fazia muitas toucas e cachecóis e doava
para qualquer pessoa, teve a fase das bonecas de pano, das velas, dos
sabonetes, das bijuterias, enfim terminava uma mania começava outra.
Eu
sempre conversei muito com mamãe e ela as vezes me dizia: — Não pense que é
fácil ser eu. Tem épocas em que eu também não me aguento.
Quando
fiz 18 anos fui estudar em uma Universidade em outro estado, não foi fácil para
ninguém, imagine para mamãe. Viajamos 15 horas para fazer a matrícula e arrumar
um lugar para eu morar, ao chegar no Campus os veteranos já estavam sentados
olhando os calouros que se matriculavam. Um deles até chegou a perguntou que
curso eu ia fazer. Mamãe olhava aqueles
rapazes com suspeita, de repente ela nos deixou e foi até o grupo de rapazes,
chegou bem pertinho deles e falou:
—
Se vocês encostarem um dedo em meu filho, eu volto aqui e garanto que castrarei
cada um de vocês sem anestesia. Estou falando sério! Estão me entendendo!
Ela
tinha o semblante sério, foi muito assustador. Todos ficaram encarando minha
mãe, e eu não sabia onde enfiar a minha cara.
Depois
de arrumar um lugar para ficar, mesmo que provisório meus pais retornaram,
deixando bem claro que eu deveria ficar longe dos trotes, não participar da
primeira semana de aula e ligar para casa todos os dias.
Eu,
como todo adolescente, quis aproveitar tudo que a vida podia proporcionar longe
dos olhos de meus pais. Claro que fui participar do trote no primeiro dia de
aula e esqueci-me de colocar o celular para carregar.
Como
eu não liguei para casa, meus pais ficaram o dia todo tentando me encontrar,
quando já estava anoitecendo, ficaram sabendo não sei por quem que eu tinha
saído às 7h para participar do trote. Foi aí que minha mãe enlouqueceu de vez.
Meu
pai falou que ela gritava, chorava e andava de um lado para outro da casa,
dizia que eu estava boiando em um lago qualquer da cidade. Ligaram para a
polícia, para o corpo de bombeiro, para o coordenador do curso, para todos os
alunos da lista de aprovados do meu curso, para o porteiro do prédio e para os
rapazes que iam dividir o apartamento comigo.
Às
23h, estava eu todo feliz num churrasco organizado com o dinheiro do trote,
pois ficamos o dia inteiro no semáforo pedindo dinheiro, quando começou a
chegar gente me procurando, e não era pouca gente, o porteiro do prédio onde eu
ira morar já estava de folga, então foi com a esposa e os filhos, o coordenador
do curso me olhou de um jeito que eu nunca mais esqueci, isso sem falar nos
policiais que me deram uma bronca e me fizeram ligar para casa. Só sei que os
veteranos com quem eu ia morar me levaram para o apartamento e disseram que eu
deveria encontrar outro lugar para morar, que não ia dar certo viver com eles. Não
respondi nada, fiquei bem quieto e chorei em silêncio, por ter passado tanta
vergonha.
Não
era à toa que minha avó não a deixava cozinhar, era muito intensa em tudo que
fazia, queria de fazer vários pratos ao mesmo tempo.
Quando
minha avó não estava presente ela ia para a cozinha e dizia: — Quem falou que
precisa por sal no feijão? Eu gosto de feijão com açúcar! Coma feijão com o que você quiser.
Fazia
bolos e pães, mas todos tinham de ficar de olho em todos os detalhes. Os pães
saíam com ovos inteiros e os bolos salgados, com talheres no meio. Chegamos até
a comer bolo de fubá salgado e com pimenta.
O
fato mais grave de que me lembro, foi no aniversário de 35 anos de meu pai. Ele
não gostava de festas, então resolvemos fazer um jantar surpresa. Minhas avós e
minhas tias chegaram trazendo cada uma, um prato. Minha mãe quis ficar
responsável pelas tortas e salgados. A mesa ficou linda. Os pratos foram
colocados um a um, todos com uma aparência maravilhosa, só faltavam os assados
de minha mãe. Meu pai chegou, e foi aquela surpresa. Estávamos prontos para
comer, brindamos e alguém lembrou que estava faltando à mamãe com os seus
assados. Eu saí do meu lugar e fui até a cozinha ajudá-la.
Chegando
lá, vi que a bancada da pia estava repleta de assadeiras. Tinha também
assadeiras no chão e em cima do fogão. Cheguei a contar doze pratos, com várias
partes de carnes e aves assadas.
O
cheiro era inebriante, a aparência maravilhosa. Ela estava muito contente com
seu trabalho, enfeitara todos os pratos, com muita delicadeza e carinho,
parecia uma criança em meio aos seus brinquedos.
Comemos
muito, e distribuímos para os vizinhos um pouco daquela fartura. Ninguém teve a
preocupação de perguntar onde ela encontrou tantas carnes. Dias depois ouvimos
boatos de sumiço de alguns animais da vizinhança.
Foram
encontrados esqueletos de bichos em nosso quintal, até os coelhos e os pombos
de minha vizinha sumiram. Vi uns cartazes na padaria e nos postes do nosso
bairro, de alguns animais desaparecidos, mas nunca pudemos provar nada, e muito
menos perguntar para ela.
Eu
estava acostumado com a minha vida em família, na verdade não conhecia outra. O que
é ser normal ou ter uma família normal, quem sabe? Todos têm seus altos e
baixos. Todos têm conflitos, só sei que tenho aprendido muita coisa sobre fé,
amizade, compaixão e principalmente amor.
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